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Artigo publicado no suplemento "CRONOS" - Pilares do Tempo
Edição do Público nº 4798 de 10 de Maio de 2003
Concepção e Coordenação Editorial: FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA
Editor Fotográfico: ADRIANO MIRANDA
 
Quem, há três ou quatro anos, falasse com Luís Cousinha sobre a relojoaria férrea em Portugal, deparava com um homem amargurado, ressentido face à situação existente. E ele tinha razão para isso: herdeiro de um nome de família que o avô lançou nos anos 30, 40 e 50 como sinónimo de relógios de torre, via esse património desprezado, um pouco por todo o lado, achava que o futuro não passava por ali.
Mas, a pouco e pouco, entidades oficiais, empresas e instituições, a Igreja e particulares, têm crescido na sensibilidade para o património da chamada relojoaria grossa, seja ele as mais de duas mil máquinas que o avô Cousinha fez e instalou por todo o país, seja mecanismos muito mais antigos, quase sempre muito maltratados, que não foram entretanto para o lixo ou vendidos para o estrangeiro.
Hoje em dia, Luís Cousinha sente que começa a haver algum futuro em Portugal para a recuperação, manutenção e restauro desse património. E fica feliz com isso. Neste momento, tem em mãos, por encomenda do IPPAR, os relógios da Sé de Miranda do Douro. São bem diferentes, os dois relógios: o da torre norte é de meados do século XVIII, do tempo de D. João V, um período de desafogo relativo nos dinheiros públicos, mercê do ouro do Brasil, e quando se fizeram dezenas, se não centenas de encomendas para relógios de torre. Este mecanismo, cavilhado, não está assinado mas Luís Cousinha arrisca que será uma peça espanhola, da vizinha província de Aragão. "A zona raiana de Miranda do Douro, em termos relojoeiros, sempre foi muito influenciada pelo outro lado da fronteira", diz. Com um único ponteiro e corda para um dia, está muito maltratado pelo tempo. As peças serão originais, à excepçâo do escape, que é a que tem sempre maior desgaste.
O outro exemplar, é muito mais moderno. O relógio da torre sul é um Moret du Jura, francês, de finais do século XIX, início do século XX (semelhante ao que se encontra, por exemplo, na Torre das Cabaças, em Santarém). Tem corda para oito dias.
Tanto um como outro, quando voltarem a ser colocados na Sé de Miranda do Douro, terão que ter atenção diária, que ser oleados de três em três meses. "Já disse ao IPPAR que a filosofia, nestas coisas, tem que ser a de dar uso diário aos objectos. E isso exige mão-de-obra. Mas só assim se justifica o investimento no restauro", defende Cousinha.
A desmontagem de todas as peças, a decapagem química, o polimento, a reparação de folgas ou o fabrico de peças novas quando faltam as originais são passos que estes relógios terão que dar nas mãos de Cousinha e do seu ajudante, José Carlos Figueiredo. A pintura, lubrificação e montagem, nas sujas instalações, para controlo do isocronismo das máquinas antecede a desmontagem de novo, o levar tudo para o local onde os relógios ficarão. Lá serão de novo montados, sincronizando-se todo o sistema. Para estes dois relógios de Miranda, será necessário um ano de trabalho.
Nos últimos tempos, Cousinha restaurou os rel6gios de torre da Igreja de Porto Form0so, das Torres Públicas da Ribeira Grande e de Vila Franca do Campo, todos na ilha de São Miguel; da Sé de Vila Real de Trás-os-Montes; da torre pública da freguesia de Póvoa e Meadas, em Castelo de Vide; da Igreja de Moimenta, Vinhais, Bragança; e da Igreja da Base Aérea nº 1, na Granja do Marquês, Sintra.
Apesar do estado de destruição e abandono a que chegou o património relojoeiro de torre em Portugal, ainda será possível recuperar muito, desde que se actue rapidamente. E parece que as mentalidades estão, finalmente, a mudar.