Cá dentro a luz é cinematográfica. Lá fora o calor começará a chatear daqui a pouco tempo. Estamos na Travessa do Relógio, no centro de Castelo Branco. É aqui que o relojoeiro de 62 anos vai mostrar uma das muitas jóias de família, um relógio mecânico enorme.
Está lá em cima, faz soar quatro sinos e é um ano mais velho que o homem que o recuperou e que sobe agora as escadas. “Tem de ser com calma, que estou velho e gordo.” Será exagero.
Cousinha é o portador de uma barriga à portuguesa, mas está habituado a subir e a descer muitos degraus perigosos. Por vezes com material ao lombo e através de teias de aranha e caca de pombo ou andorinha.
Num instante, chega ao último degrau e fica a olhar para esta máquina cheia de rodas dentadas. São peças metálicas pintadas de verde, vermelho e dourado, outras de madeira. Só um entendido as conseguiria montar no sítio certo e está tudo a funcionar na perfeição.
De quinze em quinze minutos o relógio-carrilhão parece ter uma convulsão e começa a dar as horas, fazendo soar os sinos da torre. A imagem feita do relojoeiro será a de um homem sentado e minucioso. Agarrado a lupas, pinças e outros utensílios à escala da neurocirurgia. Mas aqui a precisão é em grande.
Neste caso, o relógio tem mais de dois metros de comprimento e pesa 500 quilos. A assinatura familiar apresenta-se no centro da máquina, junto à data de montagem e ao local de fabrico. Segundo as letras gravadas no metal do
relógio, esta é uma obra do relojoeiro mecânico Manoel Francisco Cousinha.
Assim mesmo, com "O". O avô de Luís Cousinha fundou em 1930 A Boa Construtora, Fábrica Nacional de Relógios Monumentais, em Almada, onde chegaram a trabalhar 40 pessoas no pós-guerra.
E foi um relojoeiro mítico. Improvisou o primeiro relógio com lata e casca de carvalho aos nove anos, quando ainda era pastor em Sobral Magro, Arganil. Terá sido o passaporte para sair da aldeia rumo a Lisboa.
“Nasci em cima de relógios”, gosta de dizer o neto mais velho do autor desta bisarma. Neste caso não é exagero, porque o parto foi em casa e a casa era num dos andares do prédio onde funcionou A Boa Construtora.
Há vinte anos a família deixou de fabricar relógios mecânicos, o prédio foi alugado e a empresa mudou-se para um anexo da casa de Luís Cousinha, em Corroios, perto de Almada.
Agora a empresa chama-se Cousinha Lda. e além de tratar da saúde de relógios mecânicos também está virada para a informática. Mas o que interessa mesmo é falar de rodas dentadas, pêndulos e pesos.
Desde o primeiro dia que os relógios mecânicos têm marcado a vida de Luís Cousinha. Apesar de não usar relógio de pulso – “Digamos que é uma mania como outra qualquer” – e de esta manhã ter chegado sete minutos atrasado ao ponto de encontro.
Também não usa despertador. Prefere manter o televisor ligado toda a noite, no Canal História. “Mas eles são uns aldrabões, agora vou despedi-los”, informa em primeira-mão. Um especialista em relógios mecânicos monumentais é uma raridade anacrónica, porque os relógios mecânicos foram ultrapassados há décadas pelo progresso. E Cousinha poderia ter sido muitas outras coisas, deixando estes assuntos enferrujados da relojoaria antiga para o Canal História ou a RTP Memória. Poderia ser por exemplo baixista e teclista numa banda de rock, como foi no tempo em que era “um grande gabiru” e tocava com músicos como Zé Nabo e Zé da Cadela.
Ensaiavam no escritório da Boa Construtora, depois de os funcionários saírem. “Éramos os Dakotas, na altura éramos conhecidos.” Apesar da roupa de trabalho e da forma física actual, Cousinha mantém um ar de estrela rock dos anos 60, na reforma. Fora o ié-ié, poderia também ter ficado na Força Aérea, onde esteve meia dúzia de anos e foi especialista em radares.
"Nas folgas, fins-de-semana e férias ia sempre para os relógios", conta. Acabou mesmo por pegar na empresa familiar, onde o pai trabalhava na parte administrativa.
Desde muito pequeno que quis trabalhar com estas máquinas pesadas mas delicadas. E aprendeu com o melhor professor possível. “Desde muito novo, o meu avô estava lá na oficina de volta dos relógios e chamava-me. Sentava-me ao colo dele e explicava-me tudo: «Aquele é o caracol, aquele é o lagarto, aquela é a roda de coroa».”
O avô morreu quando Luís Cousinha tinha 14 anos e o futuro relojoeiro continuou depois de vir para a fábrica sempre que podia. Começou a trabalhar para a empresa familiar aos 16 anos, a instalar e reparar relógios por todo o país.
Quando ia trabalhar para as aldeias comia o que havia e chegou a dormir com o gado. Como quando tinha 17 anos e foi instalar um relógio numa aldeia para os lados de Viseu. “Eu e o mestre descemos com o material ao lombo de mulas.” Conseguiram chegar à aldeia, mas tiveram de lá passar a noite à espera que os tijolos de adobe secassem para poder ser montado o relógio.
Dormiram sobre fardos de palha. Vendo, ouvindo e cheirando o gado através do soalho esburacado.
Nessa altura os relógios de torre ainda eram essenciais à vida de muitos portugueses. Era a partir deles que se regulava o quotidiano.
Rodada a chave, já do lado de fora da torre de Castelo Branco, a temperatura aproxima-se dos 30 graus. Mas antes do almoço o relojoeiro ainda terá de passar por Torre, neste caso um lugar da aldeia de Louriçal do Campo, a 30 quilómetros de Castelo Branco.
O Audi cinzento de 1995 conduzido pelo relojoeiro parece conhecer as curvas do caminho. Em pouco tempo Luís Cousinha já está em Torre junto à capela de granito, à procura da mulher de preto que tem a chave.
Durante os minutos de espera vão passando pessoas com enxadas, vindas das hortas com o GPS virado para o almoço.
Daqui a pouco o sino será accionado pelo relógio para marcar as doze horas, mas para já só a passarada trata da banda sonora de Torre.
Chegada a chave, o relojoeiro vai acertar o relógio computadorizado que instalou no sábado passado. Relógio não, que isto de relojoaria não tem nada, diz. “É como programar um vídeo. Não é um relógio, é um sistema de distribuição horária.” Embora fale da tecnologia actual com à-vontade, gosta mesmo é de andar pelo país a
recuperar, reparar e a fazer a manutenção de relógios de torre.
Muitos deles feitos na fábrica do avô.
Nomes como Louriçal do Campo, Salvaterra do Extremo ou Porto Silvado são comuns no léxico deste relojoeiro-viajante.
Habituado a andar na estrada durante a semana, tem já em vista o restaurante onde quer almoçar. As petingas e o cozido estão a menos de vinte quilómetros, em Póvoa de Rio de Moinhos. Já à mesa, aproveita para falar de radioamadorismo, um passatempo que leva muito a sério e que gostaria de ver mais valorizado pela Protecção Civil. Mas isso são outras lutas.
Quem quiser conhecer todos os relógios Cousinha ainda em funcionamento ver-se-á obrigado a fazer muitos quilómetros pelo mapa de estradas de Portugal continental e ilhas.
Fora do país, a viagem terá de continuar por várias localidades brasileiras, pela Guiné-Bissau e por Angola, pelo Norte da Europa e pelo Líbano.
Entre os relógios mecânicos fabricados e os relógios electromecânicos importados, terão sido instalados pelos Cousinha entre dois e três mil relógios monumentais. Em Lisboa, os mais conhecidos são o do Museu Militar e o do Arco da Rua Augusta, recuperado há pouco tempo pelo neto do fabricante.
O enorme relógio da Rotunda do Relógio é que já passou à história e Luís Cousinha usa palavras duras quando se refere ao substituto, uma espécie de relógio de pulso em ponto médio.
No Porto, a estrela da família é o relógio-carrilhão da Igreja de Nossa Senhora da Conceição – "o maior do mundo da época moderna", diz.
Há também muitos relógios mecânicos que ainda foram feitos por Luís Cousinha, antes de decidir parar a produção da fábrica há vinte anos. Quem os quiser ver pode ir por exemplo à aldeia de Porto Silvado, no concelho de Arganil. Sobre relógios mecânicos, o antigo baixista dos Dakotas queixa-se sempre aos jornalistas do desprezo do país pelo património
histórico, da relojoaria nacional.
Feitos os 70 quilómetros entre as petingas fritas e Salvaterra do Extremo, o relojoeiro fala no topo desta torre com vista sobre Salvaterra do Extremo. Em frente a um relógio feito pelo avô e recém-recuperado.
“Hoje em dia há mais obras-primas a apodrecer por aí do que a funcionar”, diz. “Há relógios destes e maiores que este em palheiros, a apodrecer.” Cousinha critica as “autênticas barbaridades que se têm feito” e garante que não está a vender o seu peixe.
O relojoeiro aceita como normal que se decida não investir na recuperação de relógios mecânicos que estejam parados. Mas acha que, em vez de deixarem apodrecer os relógios, os proprietários deveriam oferecê-los às autarquias para ficarem em exposição ou para pelo menos serem guardados.
Também há histórias com final feliz na relojoaria monumental portuguesa. Uma dela é a dos relógios da antiga Sé de Miranda do Douro, recuperados pelo relojoeiro de Almada.
Um deles tem mais de 200 anos e vai ser montado no local até ao final do ano. E quem terá sido o autor? “É um relógio popular, feito pelo povo. Um relógio feito por cavilhas, à forja, sem parafusos.”
Aqui de cima vê-se o azul do céu através de uma pequena janela rectangular de um dos lados da cúpula.
Lá fora estão mais de trinta graus, aqui passa uma aragem e as casas de Salvaterra do Extremo e os campos à volta parecem convidativos. O relógio é uma miniatura do de Castelo Branco e está ligado a um martelo metálico que faz soar o único sino.
O mecanismo é protegido da caca de andorinha e da chuva por um armário de vidro grosso.
E o relojoeiro que o recuperou veio buscar uma das portas que precisa de ser substituída por outra mais funcional. Daqui a pouco vai descer pela escadaria de pedra gasta e estreita com a porta de vidro às costas, esperando não a partir. Só se ouvem pássaros.
Pássaros e o tiquetaque do relógio. Quem é que poderá reparar relógios como este quando Luís Cousinha se cansar desta “luta do caraças”? O neto do antigo pastor de Sobral Magro tem cinco filhos, mas nenhum deles optou pela relojoaria. Cousinha garante ser o único relojoeiro de torre activo em Portugal, embora conte que há relojoeiros de relógios de pulso “a fazer umas coisas, umas reparações”.
A saúde futura de máquinas como esta poderá estar garantida pelo ajudante de Cousinha, que só não veio a Salvaterra do Extremo por estar doente.
Chama-se Jorge Costa, tem 23 anos e já faz muita coisa sozinho, diz o mentor. “Está comigo há três anos, aprendeu comigo. Está a dedicar-se muito, tem gosto nisto e quer continuar.” |