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José de Brito
 
Com o título "MANUEL FRANCISCO COUSINHA invertor e construtor de relógios-carrilhões", o «Jornal de Arganil», pela pena do seu colaborador Senhor José de Brito, publicou nas suas edições de 13 e 20 do mês de Novembro de 2003, a história do fundador da nossa firma. Os nossos agradecimentos pela divulgação da vida e obra de um grande homem, católico devoto e português.
Bem hajam.
Transcrição total do artigo de José de Brito

Como se diz em vários textos, os Anglo-Saxões apreciam muito a leitura de biografias! Tal predilecção justifica-se, porque na história dos homens que se distinguiram quer por virtudes quer por talentos, muito tem que aprender quem aspira a vencer na vida...
Embora em Portugal haja poucas biografias publicadas, esta é bem merecedora de ser divulgada!
Eis alguns traços da biografia de Manuel Francisco Cousinha, que nos foram divulgados e apresentados por seu neto, e continuador sr. Luís Manuel Cousinha de Vasconcelos Forra no seu escritório da Electromecânica e Informática, Lda. - Reparação, Restauro e Reconstrução de Relógios Mecânicos e Carrilhões, em Marisol, próximo da Charneca de Caparica.
O seu avô, Manuel Francisco Cousinha, teve por berço a pequena propriedade «Palheiro às Pontes», em Sobral Magro, na freguesia de Pomares, do concelho de Arganil, tendo por pai um pedreiro. Sua mãe dirigia a exploração agrícola daquele pequeno prédio rústico, sendo feita por ela e pelos filhos a respectiva cultura, que não admitia a colaboração de animais por ser muito acidentado o terreno.
O pároco da freguesia, padre Nogueira, ia dizer missa aos domingos e dias santos à capela de Sobral Magro, sendo o estipêndio respectivo pago pela gente do local, que para isso se quotizava.
Esse sacerdote perguntou um dia ao pai do Manuel se dava licença que o garoto aprendesse a acolitar. O pedreiro disse logo que sim e, como o bom padre lhe lembrasse que convinha saber se o rapazito queria aprender, logo este declarou: - Ora essa! Tem que querer!...
Começou então o padre por ensinar ao menino a primeira resposta do intróito e na lição seguinte, verificando que ele aprendera bem, ensinou-lhe a segunda e a terceira.
E, assim, em cada lição o futuro acólito ficou a saber mais duas respostas, até que um dia pediu ao mestre que lhe ensinasse mais e variadas respostas, visto que estas facilmente e sem esforço as aprendia.
Deste modo, habilitou-se para acólito em pouco tempo. Afeiçoou-se o bom sacerdote ao seu sacristãozinho, cuja viva inteligência bem merecia ser cultivada, por isso aconselhou o pai a mandá-lo estudar.
Mas o artífice objectou que não tinha meios para tal. Propôs-lhe então o padre Nogueira levar o Manuel para a sua companhia: o pai só daria a indispensável autorização; ele encarregava-se de o alojar, vestir, alimentar, instruir e educar o estudantinho.
Caiu, pois, pela base, a objecção; e Manuel logo que foi para casa do prior, onde aprendeu a ler e a rezar, tornou-se muito devoto do Imaculado Coração de Maria.
Decorridos dois anos, o padre teve de ir definitivamente para Coimbra e o aluno regressou ao lar, passando a trabalhar no campo com os irmãos.
Como não tivesse queda para as fainas agrícolas, punha pouca diligência nelas, o que levava o pedreiro a dizer, na sua linguagem rude, que ele era «o mais malandro dos irmãos».
Quando o serviço apertava muito no Palheiro às Pontes, contratavam-se homens que ali iam ganhar o dia. Para animar o Manuel a trabalhar, enquadravam-no então na fila dos cavadores; mas o mocinho não conseguia acompanhá-los; ficava para trás; e os trabalhadores aborrecidos com o retardatário, mandavam-no embora. Por fim, o pai, vendo que ele não tinha feitio nenhum para semelhante vida, fê-lo pastor do seu rebanho de ovelhas e cabras.
São longos os dias do pegureiro Manuel Cousinha que com muita habilidade para trabalhos manuais vira um ou outro relógio.

Para quem o tempo agora corria devagar, lembrou-se, para o matar, de construir um engenho ou máquina de o marcar e medir.
E pôs mãos à obra. Duro e paciente labor! Contudo, ao cabo de três anos, o pastorinho, que então contava nove, tinha conseguido fabricar, com casca de carvalho e folha de flandres, um relógio! As ferramentas empregadas nisso foram apenas uma velha sovela, uma tesoura e uma navalha comprada de propósito.
A campainha do relógio era um chocalho de cabra. A fim de o guardar, o relojoeiro serrano meteu o seu invento no palheiro, ou corte, como lá lhe chama, onde se recolhiam palha e erva para alimento dos animais no período do gelo e da neve. A chave andava, por esse motivo, sempre nas suas algibeiras.
Mas o pedreiro, um dia, ao passar por ali, ouviu o bater de um relógio, o que lhe causou estranheza. À noite a família, antes de se ir deitar, ceavam.
Após a refeição, havia a reza da ceia, para agradecer a Deus o alimento recebido da providência, e depois a reza do terço. Finahnente, o pai chamava os filhos a contas. Interrogava-os; eles respondiam, e se a merecessem, recebiam a devida repreensão ou correcção.
Poucas vezes a mão paterna castigava; mas quando isso sucedia, sentiam-na bem porque era pesada. Nessa noite o pedreiro, querendo descobrir o que havia na corte, perguntou ao Manuel se chovia lá, porque lhe parecia ter ouvido cair uns pingos.
O rapaz respondeu: não chove, não senhor! Mas o pai volveu: – Hás-de dar-me a chave para eu ver se chove ou não. O mocinho estremeceu! – Se o pai lhe destruísse o relógio! Contudo, apesar de aterrado, entregou a chave. Mas nessa noite, nem dormiu tomado de aflição. Se fora insónia a noite, o dia seguinte foi angustioso! Que iria suceder ao relógio?!... Porém, no regresso do gado ao curral, que era debaixo do palheiro Manuel Cousinha sentiu bater o relógio, o que lhe causou intensa alegria, pelo menos não lho haviam escangalhado. Após a ceia e as rezas, o pai chamou-o novamente a contas e perguntou-lhe com severidade:
- Onde roubas-te o aparelho que está na corte?
O interrogado respondeu:
- Em parte alguma. A máquina de marcar o tempo fi-la eu.
- Mentira! Exclamou, irado o pai.
- Não tinhas saber para isso;
e dispunha-se, provavelmente, a fazer sentir ao jovem fabricante o peso da mão paterna, quando o mocinho, lembrando-se de que no palheiro estavam várias peças que inutilizara nas sucessivas tentativas feitas, para construir o relógio, disse que no dia seguinte mostraria que a máquina tinha sido feita por ele.
Suspendeu o pai a aplicação do castigo e, no dia seguinte, foi à corte com o Manuel.
Tirando de sob as palhas as tais peças inutilizadas, disse que as metera ali, ao ver depois de as fabricar, que não serviam, e deu mais algumas explicações. Convenceu-se, então o pai, de que o relógio era, efectivamente, obra do fìlho, e foi tal a sua comoção que chorou, acabando por lhe dizer:
- Vejo que não te ajeitas à vida do campo. Para onde queres ir?
O rapaz respondeu, prontamente:
- Para Lisboa.

Veio, pois, Manuel para a capital recomendado a um tio, muito esperançado que aprenderia aqui a arte de relojoeiro. Mas o tio meteu-o a descarregador do porto de Lisboa. Calcule-se a decepção do pobre rapaz!
Passados alguns dias, o tio teve de sair de Lisboa e o sobrinho aproveitou logo tão favorável circunstância para ir oferecer os seus serviços a um relojoeiro da Rua da Prata.
O homem olhou para aquele moço, de aspecto rústico, e considerou-o, embora precipitadamente, incapaz de fazer qualquer coisa de jeito na sua oficina. Um rola daqueles a querer ser relojoeiro.
Mas o moço tanto pediu e insistiu, que o lojista o admitiu por dó e encarregou-o de pequenos trabalhois de limpeza. Até que ao terceiro dia meteu-lhe nas mãos um despertador, velho e avariado, e disse-lhe que visse se era capaz de o consertar.
Manuel deitou-se ao trabalho e em dois dias pôs o relógio a funcionar e a marcar as horas e os minutos. O patrão ficou admiradíssimo da habilidade manifestada pelo rola, naquele conserto, e tomou-o definitivamente para seu empregado, pagando-lhe cem mil e tal réis (importância que não chegaria a dois escudos diários), e assim aprendeu o ofìcio.
Em 1914 desencadeou-se a I Grande Guerra. Portugal acabou por ser envolvido nela e Manuel Cousinha partiu para França como cabo do Corpo Expedicionário Português, tal como o meu pai e tantos outros mancebos da sua geração naturais de muitas terras da nossa região em número de largas dezenas ou centenas mesmo.
Antes de partir, o expedicionário foi a Coimbra despedir-se do seu amigo padre Nogueira.
E, então, o já ali pároco da Sé deu-lhe bons concelhos, animou-o e exortou-o a nunca perder a fé e a ter confiança em Deus e em Nossa Senhora, acrescentando que não morreria na guerra.
Deu-lhe mais uns livros religiosos, para leitura, e um terço, recomendando-lhe que nunca deixasse de o rezar ostensivamente com os que quisessem, para isso, associar-se a ele.
Mais lhe recomendou, que não forçasse ninguém a rezar o terço, mas que não admitisse que alguém zombasse desse exercício religioso e acto de fé e que, para esse efeito, se fosse necessário, usasse da sua autoridade, visto que era cabo.

Manuel partiu para a França, e por lá andou a bater-se. Uma bala varou-lhe a perna direita, e em combates com arma branca, foi muitas vezes ferido. Mas a fé nunca a perdeu, e seguiu sempre os conselhos do cónego Nogueira, que volta e meia lhe mandava livros de leitura sã e propaganda religiosa.
Nos acampamentos e aquartelamentos, o cabo rezava publicamente o terço com outros que tinham o mesmo pensar dele. E fazia-o, sem que ninguém o incomodasse por isso; porque, se algum soldado começava a querer troçar daquela devoção, ele punha-o na ordem; e o trocista, ou se afastava ou, se queria ficar ali, tinha de renunciar à troça. E por esse modo, converteu um soldado português do mesmo C.E.P. que, no fim da guerra, vindo para Portugal, cortou a ligação ilícita que contraía e se fez padre.
Após meses de campanha, Manuel obteve alguns dias de licença e foi descansar para a pequena cidade de Morez, no Departamento do Jura, que confina com a Suíça. Há nela muitos fabricantes de relógios, e o cabo português aprendeu lá muitos segredos da respectiva arte, tendo-lhe ensinado desenho o alferes Amaral, também do C.E.P.
Tendo os Aliados alcançado a vitória, Manuel Cousinha veio para Portugal com as tropas expedicionárias, e saiu das fileiras do Exército.

Tencionava voltar para a França e lá ganhar a vida; mas casou e, felizmente, para a arte nacional, fixou-se na Pátria, onde passou a trabalhar em relojoaria.
E em 1930 fundou “A Boa Construtora - Fábrica Nacional de Relógios Monumentais”, com sede em Almada, na Rua Capitão Leitão, num barracão então adquirido, com uma pequena oficina.
Mais tarde começa a construção com grandes instalações, cuja inauguração se verificou no ano de 1948, donde saíra os mais belos e volumosos maquinismos de relojoaria monumental, que há memória no nosso pais.
O primeiro relógio com carrilhão, que construiu, foi o que lhe encomendaram para a Basílica de S. Pedro, de Guimarães. Toca o «Avé» dos Pastorinhos de Fátima, a «Canção das Ceifeiras» e o hino da cidade.
Foi premiado na Grande Exposição Industrial Portuguesa de 1932. Por meio de um dispositivo especial, o relógio que fabricou para o edifício dos Paços do Concelho do Fundão, acende e apaga a iluminação pública, nas horas previamente estabelecidas.
O da Fábrica de Pessegueiro, em Sever do Vouga, munido de uma sereia eléctrica audível num raio de cinco quilómetros, dá apitos que determinam as horas de abrir e fechar as instalações, iniciar, interromper, recomeçar e largar o trabalho.
Também o relógio-carrilhão instalado na igreja portuense de Nossa Senhora da Conceição foi obra de “A Boa Construtora”.
Este é o mais volumoso e mais pesado exemplar de relógios-carrilhões e por isso também a glória máxima do seu autor e construtor. Feito de uma liga de bronze e antimónio, mede 3,60 metros de comprimento, 1,30 m de largura, l.00 m de altura e pesa 3 toneladas.
Cerca de 2.000 exemplares estão espalhados, por diversos pontos do país, incluindo Açores, no antigo Ultramar, no Brasil e países da Europa.
Em Lisboa, a antiga Fábrica esteve ou está representada, por exemplo na Rotunda do Relógio, junto ao Aeroporto, e ainda está no Arco da Rua Augusta, no Museu Militar, em Santa Apolónia e no Mercado 24 de Julho, bem como em Mafra.
Na nossa região ainda existem os relógios, na torre de Avô, Sobral Magro, oferta e colocação pelo autor em 1945 e o da “Torre Salazar”, ou da Torre da Paz, no adro da linda capela de Santa Rita, na Benfeita - a elegante povoação a que Simões Dias chamou «um lenço de três pontas a branquejar ao solo».
Também é um exemplar único concebido por Manuel Cousinha, para todos os anos, no dia 7 de Maio, comemorar e recordar este dia histórico, do fim da guerra na Europa. Recordação essa que o relógio ainda hoje dá automaticamente um repique de 1.620 badaladas, número correspondente aos dias do sangrento conflito».

“A Boa Construtora” só deixou de fabricar depois do 25 de Abril, quando a maior parte das pessoas começou a preferir os relógios a que não é preciso dar corda. Hoje é uma pequena oficina de restauro, mantida pelo Sr. Luís Cousinha, neto do fundador.
A antiga fábrica de Almada tem os seus espaços alugados, por já não se justificar a antiga utilização, e a nova “Cousinha – Electromecânica e Informática, Lda.”, alargou as suas actividades aos computadores, mas continua a garantir a manutenção e reparação de dezenas de relógios mecânicos de torre, provenientes de muitas igrejas e edifícios públicos.
Apesar de ser hoje possível substituir estes mecanismos por sistemas computorizados, algumas entidades preferem manter o funcionamento antigo, o que justifica o trabalho da oficina.
O actual proprietário diz que, entre muitas outras coisas, o seu negócio lhe deu a conhecer o país.
Houve tempos em que era obrigado a percorrê-lo e a passar vários dias nas povoações, algumas delas isoladas, nas quais haviam relógios de torre para montar ou mesmo consertar.
Observou como nas pequenas comunidades a vida das pessoas se regulava pelo relógio da Igreja. Os sistemas de regas e as horas da partilha dessas águas eram reguladas e comandadas por ele.
Reconhece como hoje, nas cidades, os relógios são essencialmente peças decorativas. A passagem do tempo, que é a matéria-prima do seu trabalho, não o aflige minimamente. Talvez por sentir que tem tido “uma vida cheia”, em todos os seus momentos.
Luís Cousinha aprendeu com o pai, genro do fundador, a construir e a reparar relógios. Entre a fundação da antiga fábrica e os trabalhos da actual oficina conta milhares de relógios: fabricados, restaurados e importados. Tem 57 anos, e está convencido que o negócio da família acabará com ele. Os seus filhos seguiram outras áreas e não deverão dedicar-se à relojoaria.
Os tempos são outros - dizemos nós - que este é um mundo onde o tempo se mede sem calendários e sem relógios. Este é um mundo em que o tempo se mede pelo intervalo que vai de um desejo à sua satisfação! Se a satisfação for imediata então o tempo não existe.
Pelo contrário, se demorar alguns minutos, isso pode ser a eternidade. Este é o primeiro tempo onde tudo começa. Muito concreto, nada abstracto.
A noção do tempo constrói-se desde o nascimento. É uma noção evolutiva que depende da capacidade de abstracção da criança e construída através do estipular de ritmos!
Histórias do antes e do depois e a ideia de que a vida corre ao ritmo do tiquetaque de um qualquer relógio!

P.S. Os nossos agradecimentos ao Sr. Luís Cousinha pelos dados fornecidos.