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Historiadores e cientistas políticos da estatura de um David S. Landes ou de um Daniel J. Boorstin dão uma importância crucial à invenção da relojoaria mecânica para explicar, a dada altura, o avanço da Europa, do Ocidente, em relação a outros pólos civilizacionais. Portugal, que durante a Expansão, foi plataforma de elites e dos saberes de vanguarda, perdeu pouco depois a liderança.

Quando e como começaram os homens e mu1heres que habitaram o território a que hoje chamamos Portugal a “pensar” o Tempo, a ter e consciência, a medi-lo?
Terá sido no Neolítico final e começos da Idade do Cobre (3000-2500 a.C.) que surge a magnífica, exuberante, misteriosa cultura megalítica – esse grande arco que terá por cenário praticamente a totalidade dos territórios a que hoje designamos por Portugal, Espanha, França, Irlanda, Dinamarca, Grã-Bretanha e Alemanha.
Aos nossos dias, chegaram conjuntos monumentais, pedras enormes, por vezes gravadas, colocadas umas sobre as outras, umas ao lado das outras, mas especialmente orientadas – antas ou dólmenes, menires, cromeleques, que os especialistas associam a espaços sagrados, a monumentos funerários, mas também à surpreendente função de marcadores do tempo.
Portugal é especialmente rico nesses conjuntos, nomeadamente no Alto Alentejo, na Beira Baixa, no Minho.
Os monumentos megalíticos deste tipo, sem excepção estão todos dirigidos para o quadrante situado entre nordeste e sudeste, ou seja, para os pontos de amplitude máxima e mínima do nascer do Sol ao longo do ano.
As localizações dos cromeleques sugerem desde logo o conhecimento da orientação solar, ou seja, das direcções equinociais e solsticiais, cujos azimutes podiam ser medidos através de linhas virtuais que ligavam determinados pontos do cromeleque, como o seu centro, a relevos evidentes da paisagem envolvente. Temos pois que, os primeiros calendários “portugueses”, ainda e sempre prontos a funcionar, a indicar equinócios e solstícios, datam de há cinco mil anos.

OCUPAÇÃO ROMANA
Os primeiros relógios de sol terão entrado no território que é hoje Portugal através da conquista romana. Mas é grande a raridade e escassez de referências a esse tipo de artefactos. Deste período, foram encontrados até hoje alguns exemplares, como um, em barro, em Conímbriga; um, de quadrante esférico, proveniente da vila romana da Herdade da Olivã, Campo Maior, junto à fronteira espanhola; ou um fragmento, em pedra, no teatro romano de Lisboa e outro, também em pedra, na vila de Freiria (S. Domingos de Rana, Cascais).
Mas o exemplar mais interessante, até porque o único rigorosamente datado e aquele que alguma controvérsia tem gerado, é um que não foi até hoje descoberto mas cuja existência está documentada numa inscrição.
Estamos a referir-nos a uma lápide romana, de 16 a.C., encontrada em Idanha-a-Velha (antiga Egitânia). A inscrição nela contida, uma das mais antigas que se conhecem em território da Lusitânia, diz-nos que um tal Q. Iallius Augurinus mandou construir, à sua custa, um “(h)orarium” (relógio), que ofereceu à cidade de Igaeditanis.

 

O português mais antigo

O relógio de Orgens (Viseu), um exemplar cavilhado, que Frei João da Comenda terá feito em 1478. É a primeira referência a um relojoeiro português, cuja obra terá chegado aos nossos dias. Desprezada, apesar de ser uma importante peça da nossa arqueologia industrial.

A RELOJOARIA MECÂNICA
Em 1377, seguramente, a Sé de Lisboa instala “um relógio de torre, batendo sinos.” Segundo os registos, terá sido seu autor um tal “mestre João”, francês. É a primeira referência segura, em território nacional, a um relógio mecânico, de torre – a chamada relojoaria grossa.
O casamento, em 1387, da filha de João de Gant, D. Filipa de Lencastre (1360-1415), com o rei português D. João I (1357-1433) inicia, por um lado, a dinastia de Avis, por outro, o relacionamento sistemático dessa casa real com a Inglaterra e com as fontes de saber científico que vinham do norte e centro da Europa. A relojoaria que entra em Portugal a partir dessa altura é da chamada “escola inglesa”.
Cerca de um século depois, “no ano do Senhor de 1478, sendo vigário provincial frei João da Póvoa, requereu-lhe, um frade leigo que se chamava Frei João da Comenda, natural de São Pedro do Sul, morador nessa altura em Orgens, perto de Viseu, licença para construir um Relógio de Rodas de Ferro.
Porque o engenho lhe dizia que o poderia fazer bem [...] E o dito vigário lhe deu esta licença, mandando ao guardião de São Francisco de Orgens que lhe fizesse a despesa do ferro e pagasse o ferreiro que lhe forjasse as rodas e o artifício, se não que ele compassaria e limaria e pregaria e faria tudo o que lhe cumpria, e que fizesse logo um relógio para o dito mosteiro.
À qual causa aviada meteu mão à obra com despesa de 500 reis”. Segundo alguns investigadores, João da Comenda terá sido o primeiro relojoeiro português. É pelo menos o primeiro referenciado nas fontes até agora encontradas.
O exemplar de Orgens, ou o que resta dele, ainda lá se encontra. A apodrecer à chuva e ao vento, entre cacos, dejectos de pombo e uns madeiros podres. Como muita da relojoaria férrea nacional.
No século XVI, a família Behaim, natural de Nuremberga, e com negócios em Lisboa, terá sido a responsável pela importação de muitos instrumentos científicos, entre os quais belas meridianas em marfim (relógios de sol) e pela introdução dos primeiros relógios mecânicos portáteis, os chamados “ovos de Nuremberga”.
No tempo da Expansão, os ocidentais, liderados pela Coroa portuguesa, pelo respectivo Padroado e pela Companhia de Jesus, conseguiram introduzir-se nos corredores do poder na China ou no Japão através de relógios mecânicos e autómatos, que muito maravilhavam imperadores e shoguns.
Padres portugueses construíram relógios para a corte de Beijing e fundaram mesmo a primeira escola de relojoaria do Japão.
O tempo de D. João V é glorioso para a relojoaria nacional: com o ouro do Brasil, importam-se dos melhores mecanismos que havia na Europa, sendo disso paradigma os dois exemplares de torre vindas de Antuérpia e que equipam o Convento de Mafra.
O terramoto de 1755 e as Invasões Francesas são marcos de destruição no património relojoeiro nacional. A extinção das ordens religiosas e a venda do seu património a particulares, em 1894, foram a terceira machadada num acervo que continua hoje desprezado.

 

Hora legal

O relógio da Hora Legal foi colocado no Cais do Sodré no início do século XX, mas os lisboetas e o país nunca se regeram muito por ele, porque estava sempre avariado. Hoje, um modelo não mecânico garante maior precisão, mas retira-lhe algum peso histórico.

DE POMBAL AOS NOSSOS DIAS
Em 1765, por iniciativa do Marquês de Pombal, funda-se na zona das Amoreiras-Rato uma “Real Fábrica da Relogiaria”, com capital estatal, saber estrangeiro (francês), a primeira do género no país. Duraria algumas décadas.
João Jacinto de Magalhães, um “estrangeirado” estabelecido em Londres, comprou no século XVIII muitos instrumentos científicos encomendados pela corte portuguesa.
E inventou relógios, que ainda se podem apreciar em instituições nacionais.
No século XIX, dois nomes, Augusto Justiniano de Araújo, fundador em 1895 da Escola de Relojoaria da Casa Pia (continua a ser a única do país) e o do seu amigo Veríssimo Alves Pereira (que equipou com meridianas – mecanismos que faziam troar peças de canhão aquando da passagem do sol pelo zénite – as cidades de Lisboa e do Porto) dominam o Tempo português.
A Boa Reguladora, de Vila Nova de Famalicão, fundada em 1892, é exemplo único de perenidade na indústria relojoeira nacional.
Na passagem do século XIX para o século XX, um português, António Augusto de Carvalho Monteiro, o “Monteiro dos Milhões”, encomendou ao relojoeiro francês Leroy aquele que foi durante décadas considerado “o relógio mais complicado do mundo”, um exemplar de bolso, ricamente trabalhado e com dezenas de funções. Hoje, a peça encontra-se no museu de Relojoaria de Besançon.
Manuel Francisco Cousinha (Almada) ou José Pereira Cardina (Nazaré) são exemplos de construtores portugueses de relojoaria grossa que, na primeira metade do século XX equiparam muitas torres de igrejas e municípios com máquinas de sua autoria.
Um beirão, Dimas de Melo Pimenta, cedo emigrado no Brasil, construiu ali nos anos 50 do século XX uma sólida indústria relojoeira, que ainda hoje perdura, fundou um dos mais importantes museus de relojoaria, em São Paulo.
Germano Silva, um português radicado há muito na Califórnia, dedica-se à construção de espectaculares relógios de sala, munidos de grandes complicações, como carrilhões e horas universais.
Um empresário com bom gosto, António de Medeiros e Almeida, adquiriu a pouco e pouco, no século passado, entre outras peças decorativas, a maior colecção de relógios privada de Portugal, e uma das maiores do mundo em exemplares Breguet. Que não saiu do país e pode ser admirada na sua casa-museu, em Lisboa.*


* Adaptado de Elementos para uma História do Tempo, da Relojoaria e das Mentalidades em Portugal, de Fernando Correia de Oliveira, obra editada em Novembro de 2003, com o patrocínio da empresa Diamantouro, importador nacional da manufactura suíça Girard-Perregaux.