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Veio, pois, Manuel para a capital recomendado a um tio e muito esperançado em que aprenderia aqui a arte de relojoeiro.
Mas o tio meteu-o a descarregador do porto. Calcule-se a decepção do pobre rapaz. Depois de algum tempo, o tio teve de sair de Lisboa; e o sobrinho aproveitou logo tão favorável circunstância para ir oferecer os seus serviços a um relojoeiro da Rua da Prata.
O homem olhou para aquele moço, de aspecto rústico, e considerou-o, se bem que precipitadamente, incapaz de fazer qualquer coisa de jeito na sua loja e oficina.
Um rola daqueles a querer ser relojoeiro! Mas, o moço tanto pediu e insistiu, que o lojista o admitiu por dó e encarregou-o de pequenos trabalhos de limpeza.
Até que, ao terceiro dia, lhe meteu nas mãos um despertador, velho e avariado, e disse-lhe que visse se era capaz de o consertar.
Manuel deitou-se ao trabalho e em dois dias pôs o relógio a andar. O patrão ficou admiradíssimo da habilidade manifestada pelo rola naquele conserto, e tomou-o definitivamente para seu empregado. E o antigo pastorinho ali ficou, a ganhar por dia uns mil e tal réis, jorna considerável naquele tempo; e aprendeu o oficio.

APÓSTOLO NA GRANDE GUERRA

Desencadeou-se em 1914 a Grande Guerra. Portugal acabou por se ver envolvido nela; e Manuel partiu para França como cabo do C.E.P.
Antes de partir, o expedicionário foi a Coimbra despedir-se do seu amigo, Padre Nogueira.
O então já ali Cónego da Sé deu-lhe bons conselhos, animou-o e exortou-o a nunca perder a fé e a ter confiança em Deus e em Nossa Senhora, acrescentando que não morreria na guerra.
Deu-lhe mais uns livros religiosos, para leitura, e um terço, recomendando-lhe que nunca deixasse de o rezar ostensivamente com os que quisessem, para isso, associar-se a ele.
Mais lhe recomendou, que não forçasse ninguém a rezar o terço; mas que não admitisse que alguém zombasse desse exercício religioso e acto de fé e que, para esse efeito, se fosse necessário, usasse da sua autoridade, visto que era cabo. Manuel partiu para França, e por lá andou a bater-se.
Uma bala varou-lhe a perna direita e, em combates à arma branca, foi muitas vezes ferido. Mas, a fé, nunca a perdeu, e seguiu sempre os conselhos do Cónego Nogueira que, volta e meia lhe mandava livros de leitura sã e propaganda religiosa.
Nos acampamentos e aquartelamentos, o cabo rezava publicamente o terço com outros que tinham o mesmo pensar dele.
E fazia-o, sem que ninguém o incomodasse por isso; porque, se algum soldado começava a querer troçar daquela devoção, ele punha-o na ordem, como seu superior; e o trocista, ou o afastava ou, se queria ficar ali, tinha de renunciar à troça.
Na Companhia do Manuel havia um homem cujo primo, soldado de outra Companhia, o vinha às vezes visitar. Esse viajante, grande leitor de livros pouco recomendáveis, como já houvesse lido todos os que possuía, manifestou ao cabo o desejo de que este lhe emprestasse algum dos seus.
Manuel disse-lhe que escolhesse o que quisesse.
Mas o outro, que nada tinha de religioso, depois de folhear vários, não tomou nenhum; leituras daquelas não o interessavam. O cabo aproveitou a deixa e foi-lhe dizendo que fazia mal em não levar algum.
Aqueles livros eram bons e continham matéria muito aproveitável. Mas, enfim, se nenhum queria levar, isso era lá com ele. No entanto continuavam todos às suas ordens, para quando reconsiderasse.
O leitor de livros maus via o cabo a rezar em comum com alguns soldados; e não se associava a eles, porque, como dizia, «não tinha queda para aquilo».
Mas também não fazia comentários; porque tendo uma vez esboçado qualquer ironia, Manuel intimara-o a acabar com semelhantes graças ou a ir-se embora dali. Assistia, pois, o homem à reza do terço, sem dizer nada; e um dia, como não tivesse conseguido arranjar qualquer livro para ler, pediu ao cabo que lhe emprestasse um dos dele.
Que escolhesse e levasse o que quisesse, respondeu-lhe o superior.
O homem lá escolheu um e levou-o. Depois leu-o. Daí a dias voltou, restituiu o volume e pediu outro. Escolhesse o que lhe apetecesse, respondeu o cabo.
Assim, o soldado incrédulo foi lendo livros de propaganda católica, até que um dia pediu ao cabo licença para rezar também, com ele e com os outros soldados, o terço. Admiração do cabo!
No entanto o pedido foi pronta e gostosamente deferido, e o requerente rezou o terço com Manuel e os outros; e continuou a rezá-lo quando ia visitar o primo.
No seu regresso a Portugal, esse soldado desfez a ligação irregular que mantinha e veio para Lisboa trabalhar.
Estava convertido e frequentava a Igreja de São Domingos, onde ouvia Missa todos os dias. Umas senhoras notaram a piedade e recolhimento dele, esperaram-no à saída do templo e perguntaram-lhe se não queria ser Padre. «Ó minhas Senhoras», volveu. «Não tenho meios para estudar».
Mas, as boas senhoras disseram-lhe que não o preocupasse a falta de meios. Elas o subsidiariam, e pagariam as despesas necessárias para estudar e ordenar-se. E ele lá foi para o Seminário, onde fez os seus estudos, ordenando-se, por fim.
Passados alguns anos, foi nomeado Pároco de uma freguesia na província. Um dia Manuel, que não o via desde os tempos da Grande Guerra, decidiu ir visitá-lo. E pôs-se a caminho; chegou à aldeia demandada; indagou qual era a casa do Prior, e bateu-lhe à porta.
Disseram-lhe que o Padre saíra : tinha ido presidir à festa da Primeira Comunhão na sua igreja. Não tardaria, porém. Ao dirigir-se depois para o templo, Manuel viu armada, em terreno arborizado, uma grande mesa: era ali que as crianças da Primeira Comunhão viriam almoçar.
Abrigou-se, pois, debaixo de uma árvore, a certa distância da mesa, e esperou. Daí a pouco chegava o Padre, dois sacerdotes, os não comungantes e muitas pessoas que os acompanhavam. As crianças tomaram lugar á mesa e foram servidas.
Manuel olhava para aquilo tudo e principalmente para o Prior, que, sob a insistência desse olhar, também começou a encará-lo: não lhe era estranho aquele rosto; porém, não conseguia ligar o nome à pessoa.
Afinal o Padre resolveu dirigir-se ao desconhecido, que estava a intrigá-lo, e disse-lhe que, tendo ideia de que o vira algures, não conseguia identificá-lo. Mas quando o ex-cabo lhe perguntou se não se lembrava de certo acampamento do C.E.P., o sacerdote reconheceu-o logo e caiu-lhe nos braços.
Há cenas que não se podem descrever. Esta foi uma delas.
Finda a refeição das crianças, o Prior ofereceu um almoço aos dois colegas, e insistiu com Manuel para que também se sentasse à mesa. Muito instalado, o convidado acedeu.
Ás saúdes, o anfitrião brindou por aquele seu amigo e afirmou que lhe devia, aos seus bons livros e edificante exemplo, ter saído do mau caminho que trilhava, haver entrado no bom, e ter-se consagrado ao serviço de Deus.


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